Sem palavras
A poesia é, quanto a mim, muito mais do que as palavras que contém. Se quisesse ser apressada – e agora dá-me jeito sê-lo – diria que, comparada com a prosa, a poesia diz normalmente mais com menos. Claro que nem toda a poesia é assim e nem toda a prosa é assado, mas há uma cadência e uma musicalidade na poesia que, uma vez por outra, quase nos dispensam de ler ou ouvir as palavras que se deitam nos seus versos. Pode parecer estranho, bem sei, mas refiro-me a uma experiência única que vivi em Liège, num festival de poesia, na companhia do poeta José Tolentino de Mendonça (tenho, por isso, testemunhas). Estávamos já um bocado entediados com tanto discurso (era no tempo da guerra na Bósnia e toda a gente politizara as suas intervenções) e só nos apetecia sair do auditório e ir dar uma vista de olhos às livrarias (o conselheiro cultural, contudo, achou que não devíamos). Eis se não quando sobe ao palco um poeta da Eritreia – alto, magro, bonito, com modos de bailarino e gestos largos – e começa a ler um dos seus longos poemas. Mesmo sem percebermos uma palavra do que estava a dizer, o espectáculo foi tão mágico e electrizante que sentimos que o essencial daquele poema tinha passado para nós e para todos os que o ouviam. O feitiço da poesia na voz de um feiticeiro africano. Nas sessões de lançamento de romances, quando alguém se lembra de ler um capítulo em voz alta, quase sempre o público desliga ao fim de uns minutos. Porque será?