Mais vale tarde
O Manel costuma dizer que, quando acabar o mundo, os estrangeiros podem vir para Portugal, pois aqui as coisas costumam chegar com alguns anos de atraso. Foi isso que aconteceu com a edição da obra de J. Rentes de Carvalho, escritor português bastante conhecido na Holanda, onde vive, e em Portugal praticamente ignorado até há pouco tempo, quando a Quetzal resolveu começar a dar à estampa a sua obra. E eu, para que conste, estou cheia de ciúmes porque gostava de ter sido eu a fazê-lo, mas, para que também conste, andava na mesma ignorância dos outros (e tinha, ainda por cima, obrigação de estar mais desperta). Enfim, o que importa é que já nos podemos deliciar com os livros de Rentes de Carvalho e acabo de ler o primoroso La Coca, que daria um filme tão bom como Cinema Paraíso misturado com Às Segundas ao Sol e que trabalha a memória num sentido algo proustiano, mas (não me matem) bastante menos chatinho. Na contracapa chamam-lhe um pequeno romance por não chegar às 200 páginas de letra algo miúda, mas é um grande, grande, romance de formação que é imperioso ler. Tomando como ponto de partida uma investigação sobre o tráfico de droga no Minho e na Galiza para um livro ou uma reportagem que o narrador (o autor?) escreverá, este livro tem personagens absolutamente inesquecíveis e riquíssimas quer do ponto de vista humano, quer literariamente, entre velhos contrabandistas, traficantes, «brasileiros» ricos, uma preceptora francesa, um lorde enfiado numa quinta cheia de obras-primas impressionistas e até – a sério – o próprio Picasso. A não perder. E agora, assim haja tempo livre, o autor já não me escapa.