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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

21
Out11

Lugares donde não somos

Maria do Rosário Pedreira

Todos somos africanos, uma vez que era de lá, pelos vistos, o primeiro macaco capaz de dizer e pensar. Eu certamente que sou, embora só tenha estado em África três vezes e a primeira das quais já depois dos trinta. O meu bisavô esteve nas campanhas em Moçambique e casou-se com uma rapariga de Lourenço Marques; ela teimou em acompanhá-lo e acabou por morrer no mato com uma infecção oito dias depois de dar à luz a minha avó materna. Esta ficou entre os militares uns meses, amamentada pela mulher de um soba; e, depois de quatro anos na capital com a avó (da qual nada sabemos senão o nome), veio para a metrópole com o pai, onde viveu até se casar. O marido – um brasileiro provavelmente descendente de outro africano traficado – levou-a mais tarde para Angola, donde regressou ao fim de um ano com a minha mãe na barriga (concebida, portanto, em África). Interrompeu-se aqui o ciclo africano da família, mas tenho já um sobrinho no Brasil à procura de uma oportunidade de trabalho que, se não fosse publicitário, podia muito bem estar em Luanda a esta hora. Enfim, apesar da segregação em 1975, na sequência da maior ponte aérea de todos os tempos (meio milhão de pessoas!), todos somos bisnetos, netos, filhos ou amigos de retornados. (Muitos dos autores que lemos – Gonçalo Tavares e valter hugo mãe, por exemplo – nasceram nas ex-colónias.) E é deste retorno que fala o mais recente romance de Dulce Maria Cardoso – ela que viveu na carne o choque de deixar a terra que era a sua para se ver instalada com a família, a milhares de quilómetros, num hotel transformado em lar para tantos repentinos sem-abrigo. Muito lobo-antuniano na sua cadência musical e na recorrência de certos elementos-chave, este é um livro importante por muitas razões, entre elas a de dar a conhecer, envolta num feito literário de respeito, uma situação vivida por muitos portugueses que outros tantos desconhecem ou preferiram ignorar. Francamente contundente, ele tem assim mesmo a qualidade de fechar a chaga que abre, convidando-nos não só a perceber o outro lado, mas a estar desse lado (porque nos sentimos irremediavelmente mais próximos de Rui – o narrador adolescente – do que, por exemplo, da directora do hotel ou da mais simpática Teresa Bartolomeu, colega de liceu do protagonista). Com uma construção primorosa entre memória, sonho, maturidade e decepção, O Retorno, assim se chama o romance, faz-se ao mesmo tempo arte e documento e, como tal, não se pode perder.

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