Um dia destes fui, muito curiosa, ver o filme Zona de Interesse. Tinha lido o maravilhoso romance homónimo de Martin Amis em que a película se baseia e queria ver como o cineasta Jonathan Glazer o transformara numa outra linguagem. Acho que preferimos quase sempre o livro, mas respeitamos uma metamorfose bem feita; neste caso, fiquei desiludida, pois o humor britânico de Amis (tão criticado por se tratar de um livro sobre um assunto demasiado sério: a gestão dos campos de extermínio), presente desde logo na invenção de um nazi que tem uma vida de dandy paredes-meias com o campo de Aushwitz, não aparece quase nunca no filme, que se desenha completamente germânico e frio, se calhar como convém ao realizador. Outro filme que me deixou curiosa e deve ter estreado há dias foi O Vento Assobiando nas Gruas, da realizadora suíça residente em Portugal Jeanne Waltz, que nos leu e avaliou muitos originais na Temas e Debates quando eu era lá editora e publicava então muita ficção portuguesa. Desta feita, trata-se de um romance de Lídia Jorge que decorre nos anos 1990 e conta uma história de amor. Vamos ver?
Na semana passada, nas Correntes d'Escritas, foi muito bom participar dos lançamentos dos novos livros de Juan Vicente Piqueras (O Quarto Vazio) e João de Melo (Longos Versos Longos). Deste último falarei mais tarde aqui no blogue, mas queria dizer desde já que o livro de Piqueras é belíssimo e, como o título indica, fala da morte. No entanto, o autor espanhol (quase valenciano) contou uma história hilariante nas Correntes d'Escritas: que, na pequena aldeia donde eram os avós (camponeses analfabetos) e onde passou a sua infância, era costume, quando alguém morria, as crianças irem beijar a pessoa morta. Ora, explicou ele, sendo os rapazes deste meio pouco dados a mimos e bastante ariscos, chegavam à adolescência e percebiam que praticamente só tinham beijado mortos até então, pelo que de repente só queriam namorar as miúdas todas do lugar. A sua intervenção foi, de resto, muito bonita, entremeada pela leitura de poemas, mostrando que este livro já premiado lá fora tem absolutamente de ser lido. Mesmo aqueles que habitualmente não compram poesia, não terão razão para não abrir a excepção. A edição é da Assírio & Alvim.
Leio menos ensaio do que gostaria, mas, por deformação profissional, estou treinada sobretudo para ler ficção, encontrar autores, perceber o que está a mudar na arte de contar histórias. Porém, agora leio um ensaio maravilhoso, que já comprei há muito e estava lá por casa à espera de uma brecha. Soube que um colega o andava a ler e o seu entusiasmo pegou-se-me; então, mal terminei o romance que tinha em mãos, passei a Regresso a Reims sem mais demoras, até porque o livro de Didier Eribon é também uma história como as da ficção, a de um rapaz que nasceu num meio extremamente pobre e bruto e sai de casa assim que pode (até porque é homossexual e o pai e os amigos deploram pessoas como ele), não regressando senão muitos anos depois, quando já a mãe está sozinha e a relação com ela finalmente se recupera. Esse regresso a Reims é realmente poderoso, porque Didier Eribon entende que não era afinal da homossexualidade que teve vergonha (já escreveu sobre este assunto noutro ensaio que foi, aliás, libertador para muitos), mas das suas origens sociais. Colocando-se, assim, no centro da narrativa, ele analisa sociologicamente o tempo da sua infância e mesmo o tempo que antecedeu o seu nascimento (a vida tremenda de ambos os progenitores) para analisar as razões por que cresceram tanto os votos na Frente Nacional, incluindo no seio da sua família, que votara sempre no Partido Comunista. Elogiado por muitos, incluindo a falecida romancista Hilary Mantel, Regresso a Reims é um livro sobre as desigualdades de sempre e o que estas provocam no futuro.
Lisboa é negra há muito tempo, pelo menos desde o século XVI, mas o Norte de Portugal, em comparação, é branquinho como a neve. Não sei se há mais racistas na capital ou nas cidades a norte, mas a língua que falamos é a mesma em todo o País (embora, claro, uma meia dúzia de portugueses se expresse por teimosia em mirandês e haja muitos regionalismos, alguns com um sabor tão doce e vivo que deveriam ser adoptados em toda a parte). Reparou, porém, uma escritora nas Correntes d'Escritas que, de norte a sul, usamos palavras «racistas» há muito tempo; e, para exemplificar, falou de «esclarecer» e «denegrir», associando o que é positivo (tornar claro) aos brancos e o que é negativo (escamotear) aos negros, olhando com atenção para as raízes destas duas palavras (claro/negro). Não sei se a opinião não será um pouco forçada, e a criação dos vocábulos nada tenha que ver com gente, e sim com claridade e escuridão, mas que tem o seu mistério, lá isso tem... E dizer que alguém que fez uma coisa horrível devia «pintar a cara de preto», pensando bem, ainda é mais esquisito.
É conhecida a relação dos intelectuais com a política. Nas Correntes d'Escritas, este ano os temas das mesas eram quase sempre versos de canções daquelas a que em tempos chamámos «de intervenção», embora Sérgio Godinho (autor de pelo menos uma das canções escolhidas pela organização) não goste do termo. Talvez por isso (e porque este ano se comemora o 50º aniversário do 25 de Abril, houve sempre alguém que fez uma comunicação política, ora lembrando o «antes» da Revolução dos Cravos, ora chamando a atenção para o que aí vem e para a desilusão de quem sonhou, viu acontecer e agora está a assistir a uma espécie de desmontagem do sonho. Gonçalo Tavares falou disto e de uma nova geração que é profundamente racista, evocando e discutindo o termo «democracia». Mas o que mais me afligiu foi uma conversa em privado com um amigo que, por razões de trabalho, circula pelo mundo. Agora a viver na Jordânia, onde trabalham muitíssimos palestinianos que não podem visitar as famílias, ficou horrorizado quando percebeu que, nas imobiliárias, já se estavam a vender lotes de terreno em Gaza, junto ao mar, para construção de condomínios de luxo, contando com o desaparecimento total de palestinianos muito em breve. O imbatível horror. (Dizem-me em Portugal que é fake news a venda de terrenos à beira-mar, e talvez tenham razão, mas os civis mortos em Gaza chegam quase aos 30. 000, pelo que qualquer dia bem pode ser uma notícia verdadeira).
Espero que tenham passado bem esta semana. Hoje, às 18h30, realiza-se a última mesa das Correntes d'Escritas no Instituto Cervantes, em Lisboa. Entre os participantes, estará Pilar Adón, a escritora espanhola do multipremiado De Bestas e Aves, que conta a história de uma pintora que conduz em plena noite sem saber que está prestes a chegar a Betânia – uma espécie de território fora do mundo, habitado por cabras, cães e mulheres que, no entanto, parecem estar à sua espera Ela não contou a ninguém para onde ia, nem levou telemóvel porque não pensava demorar-se. Detém-se ali apenas porque se perdeu e precisa de gasolina para regressar a casa. Desconhece, porém, que, para lá do portão a que bate, as mulheres se vestem e comportam de forma bizarra, que há entre elas uma menina sem pais que não vai à escola, que um estranho aparece de vez em quando a reclamar a casa, que um lago delimita as fronteiras do terreno, sobrevoado por aves de rapina. Não quer estar ali, mas algo lhe diz que aquele pode ser o último lugar da sua vida. Num romance em que, de forma super-inventiva, nunca ninguém responde ao que é perguntado, mas dá uma resposta mesmo assim, o leitor é convidado a descobrir uma escrita «em estado puro», segundo o jornal ABC. O romance foi galardoado em Espanha com o Prémio Nacional de Ficção, o Prémio da Crítica, o Prémio Francisco Umbral/Melhor Livro do Ano e o Prémio Cálamo, na categoria «La outra mirada», tendo ainda sido finalista do Prémio Dulce Chacón de Romance e nomeado para o Prémio Bienal de Romance Mario Vargas Llosa.
Hoje ao fim da tarde lá vou para a Póvoa de Varzim. Mais uma vez irei assistir, participar e apresentar livros como editora neste festival de línguas ibéricas que comemora em 2024 a sua 25ª edição e, ao mesmo tempo, celebra os 50 anos da elevação da Póvoa de Varzim a cidade e os 50 anos da Revolução de Abril. Tanta coisa num só ano é de loucos! A conferência de abertura (que já foi feita por figuras como Sobrinho Simões, Eduardo Lourenço, Marcelo Rebelo de Sousa ou Tolentino Mendonça, por exemplo) será de José Gil e versa sobre Literatura e Filosofia. As idas às escolas do concelho continuarão e haverá desta vez umas Correntes Itinerantes, em que os mais velhos vão explicar o 25 de Abril aos mais novos para eles saberem como era a vida antes de 1974. Nas mesas, estarão não apenas escritores, mas também gente de outros ramos, como é o caso de Pedro Abrunhosa ou Amélia Muge. Paralelamente, haverá exposições, formação para professores, teatro, concertos e muito mais. Contarei tudo no regresso, juro. Agora, só voltarei ao blogue na próxima segunda. O programa vai aqui:
Há não muitos dias falei-vos da excelência dos livros de David Machado para crianças e jovens (e adultos, porque há muitíssimas pessoas de todas as idades que adoram lê-los). Um desses livros, o genial Esta História (sobre o qual escrevi aqui pouco depois de sair), foi publicado em Novembro último e tem ilustrações do premiadíssimo João Fazenda, que é um dos enormes ilustradores com que Portugal pode contar. Estes dois autores vão estar este mês a falar do seu trabalho e dos livros que fizeram juntos e separados na Livraria Lello, no Porto. A sessão já tinha estado marcada em Dezembro, mas acabou por não se poder realizar por causa das gripes e do Natal, e por isso vai finalmente ocorrer no dia 24 de Fevereiro, pelas 21h00. Sei que ainda falta bastante tempo, mas, como a inscrição é obrigatória e a sala tem lugares contados, sugiro que marquem presença.
Num fim-de-semana em que estava a escrever um texto para as Correntes d'Escritas e não tinha grande disponibilidade para livros extensos, comecei um livrinho de Stefan Zweig, Foi Ele?, com tradução e posfácio de Francisco de Nolasco Santos. Zweig é quase sempre uma garantia de tempo bem passado, e esta novela, que foi escrita ainda antes de o autor ter ido viver para o Brasil mas só foi publicada já ele lá estava (de resto, estreou-se com uma edição em português), é um livro algo atípico na obra do escritor. Partindo da relação entre dois casais, um mais velho e o outro mais jovem, vizinhos recentes numa propriedade junto de Bath, a mulher mais velha decide oferecer ao casal mais jovem um cachorro para que o excessivamente enérgico Limpley gaste energias e deixe mais sossegada a sua Betsy. A paixão-devoção do homem pelo cão é, porém, de tal forma que passa a ser o cão a mandar no homem e nunca mais se largam. Mas eis que Betsy de repente sabe que vai ser mãe e o cachorro passa para segundo plano com conseguências bastante sérias. Vale a pena ler, ainda que a tradução às vezes pareça esquisita em certas passagens, mas o posfácio é bastante interessante, sobretudo nas comparações que faz com a aceitação e o entusiasmo iniciais com o nacional-socialismo.
Tive duas edições escolares de Os Lusíadas: uma de capa encarnada, que usava no colégio e herdara dos meus irmãos (já muito coçada e com a lombada descolada) e outra de capa verde-clara que alguém me recomendou: anotada, explicando as influências, as referências, a mitologia, as alusões, etc. A primeiríssima edição de Os Lusíadas é valiosa, claro, e houve um exemplar dessa edição recentemente comprado pela Livraria Lello. Mas há outros exemplares da primeira edição, que estão em bibliotecas, diferentes desse, apesar de todos referirem a mesma data e mesma casa impressora; mas, nuns exemplares, a gravura que ornamenta o frontispício tem um pelicano com a cabeça virada para a esquerda, e noutros exemplares virada para a direita, além de que, entre as diferenças, certas capitulares não são iguais e o papel é diferente em dois exemplares supostamente da mesma edição. Porém, como nunca podemos ver à lupa dois exemplares ao lado um do outro, a dúvida prolongou-se e só agora, com a ajuda da investigação realizada por Rita Marnoto e publicada na sua recente Edição Crítica, com mais de mil páginas, sabemos que houve contrafacção e os exemplares são efectivamente de duas edições impressas em datas distintas. E agora? Quem comprou a primeira edição comprou mesmo a primeira edição?