Do bolso do colete retirou o relógio de ouro e confirmou as horas. Não queria correr o risco de se desencontrar com Eça de Queiroz: era por ele que ali se achava. Havia poucos dias, depois de regressar de uma temporada em Londres onde tivera a honra e o privilégio de ter assistido ao funeral do insigne escritor Charles Dickens, estava a comer uma torrada no Café Martinho, em Lisboa, e ali esbarrara com dois camaradas, Antero de Quental e Ramalho Ortigão, da boca de quem ficou a saber que o amigo escritor, por causa do seu administrativo exílio e eremítica vivência na cidade de Leiria, se encontrava deveras agastado: sentia-se só, enfastiado, sem um livro, uma conversa, sequer aquele mundano e frívolo burburinho dos cafés e restaurantes que tanto estimava. Num impulso, o touriste decidira-se a partir de imediato, aproveitando que a sua quinta de Saragoça, em Sintra, andava assoberbada por obras morosas; pretendia assim fazer-lhe uma bela e salvífica supresa, pela qual o comparsa não estaria à espera.
Paulo Moreiras, Leiria (edição bilingue)
P. S. Para a semana vou estar de férias, regresso ao blog no dia 30.
Quando morrem, os poetas deixam-nos, regra geral, alguns poemas soltos que, por qualquer razão, não couberam em nenhum livro que publicaram. Às vezes deixam livros que estavam a escrever quase prontos, completamente arrumados; mas é raro terem um livro do passado, com mais de trinta anos, escrito de fio a pavio num caderninho e com todos os poemas datados (e não publicado na época em que foi escrito). Ora, Nuno Júdice escreveu um livro entre 1994 e 1995 que tinha título e tudo, escrito na primeira página de um caderno de capa de cabedal e folhas gramadas num jogo de três cores: Livro de Caligrafia. Este livro foi descoberto pouco depois da sua morte pelo poeta Ricardo Marques, que foi encarregado pela família de tratar do espólio de Nuno Júdice, e era claramente um livro independente com 28 poemas, treze dos quais sonetos (talvez o poeta não o tenha publicado na época por ser tão breve, quem sabe?). Reproduzido agora num volume publicado na Dom Quixote, inclui algumas das páginas originais fotografadas a cores e com a caligrafia (cal-i-grafia, em preto-vermelho-verde) do Nuno, incluindo as suas correcções em alguns dos versos (outros saíam-lhe já limpinhos) feitas com caneta de outra cor, fazendo pensar que num dia diferente do da escrita. Vamos espreitar? É sempre bom ler o Nuno.
P.S. Hoje às 18h00 vamos ter na Feira do Livro de Lisboa, na Praça LeYa, uma conversa entre o jornalista João Morales e o escritor Tiago Salazar a propósito do recentemente publicado O Judeu de Santa Engrácia, de que já aqui falei no blogue. Contamos com a sua presença!
Uma das mais importantes fontes de rendimento de Portugal é o turismo: no Centro da cidade e nas zonas de monumentos e museus, a maioria do comércio tradicional (incluindo livrarias) deu lugar a lojas de souvenirs com ímanes para o frigorífico, mapas e pouco mais. Mas a editora Centro Atlântico teve uma ideia muito boa para diversificar os produtos. O editor e fotógrafo de património Libório Manuel Silva propôs a uma série de autores literários espalhados pelo País que escrevessem um conto alusivo a uma cidade (ou à sua cidade, quando é a deles); e depois mandou-o traduzir para inglês, publicando as suas fotografias junto com o conto em versão bilingue. Estão já disponíveis os livros sobre várias cidades: Lisboa, por João de Melo; Porto, por Isabel Rio Novo; Leiria, por Paulo Moreiras; Faro, por José Carlos Barros; São Miguel, por Paulo M. Morais; Setúbal, por Bruno Vieira Amaral; Cascais, por Rita Ferro; Sesimbra, por Patrícia Reis; Sintra, por Hugo Gonçalves; Évora, por Afonso Cruz; Vila Nova de Famalicão, por Jorge Reis-Sá; Gaia, por Miguel Miranda; e por fim (creio que incluí todos) a ilha Terceira, por Joel Neto. Mas que bela maneira de mostrar uma cidade aos nossos turistas, pela imagem e pela literatura!
Na semana passada perdemos o editor Nelson de Matos, que foi quem ficou com a Dom Quixote quando morreu Snu Abecassis (e que já tinha estado na Arcádia e na Moraes). Não só ajudou a construir "a" editora dos autores portugueses (foi nela que cresceram Lobo Antunes, João de Melo, Cardoso Pires, Lídia Jorge, Mário Cláudio e tantos outros), como sedimentou uma editora de ficção estrangeira de autores que se publicam até hoje, como Salman Rushdie ou Milan Kundera. No domingo triste da sua morte (dia 8) estava prevista na Feira do Livro uma sessão sobre os 60 anos da Dom Quixote, com vários editores que por lá passaram (o Manuel Alberto Valente, o João Rodrigues, a Cecília Andrade...); e, quando se soube da morte de Nelson de Matos, a sessão tornou-se sobretudo de homenagem e evocação. Mas no início contaram-se várias histórias, entre elas porque é que um editor da Dom Quixote do tempo da Snu Abecassis, o Carlos Araújo, se zangou com a dinamarquesa e acabou por se despedir (e criar a seguir a Teorema com Carlos da Veiga Ferreira). A verdade é que tinham sérias divergências sobre o Médio Oriente: Snu estava pelos Israelitas e Carlos Araújo pelos Palestinianos... Dissensões antigas estas. Duram até hoje, a história repete-se, repete-se, repete-se.
Hoje irei fazer na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Gaia mais uma apresentação do romance A Matéria das Estrelas, de Isabel Rio Novo, desta vez apresentado por Rui Couceiro. Não estarei disponível para responder a comentários por causa disso, pelo que recomendo aos Extraordinários apenas a revisitação de um romance que foi finalista do Prémio LeYa e publicado há dez anos, e que nunca parámos de reimprimir: Perguntem a Sarah Gross, de João Pinto Coelho. Acabámos de lançar a edição comemorativa com uma capa diferente. É um livro magistral sobre a história de duas mulheres que acabam por conhecer-se nos Estados Unidos nos anos 1960, tendo uma delas passado pela experiência traumática de Auschwitz, lugar que finalmente saberemos o que era antes da chegada dos nazis para construir um dos piores cenários da história da humanidade. Se não o leu, vai muito a tempo. Se quiser viajar com ele, vá ao link que partilho abaixo, de preferência depois de ter lido o livro. Como amanhã é feriado, encontramo-nos na próxima segunda.
Ando nisto dos livros há quase quarenta anos, mas todas as semanas tenho surpresas. Há uns tempos fui convidada pela Embaixada de França para assistir à proclamação do «Goncourt português». Para dizer a verdade, nunca tinha ouvido falar de tal iniciativa, e fui lá por curiosidade e também porque o actual director da Academia Goncourt é o escritor Philippe Claudel, que conheço há uns vinte anos (foi publicado pelo Manel) e aproveitei para o rever. Pois parece que esta história que eu não conhecia começou na Polónia há vinte e seis anos e foi-se estendendo a outros países europeus. Orientados por professores, estudantes de língua francesa recebem as obras finalistas do Goncourt original (neste caso eram quatro) e votam na que, quanto a eles, merecia ser a vencedora. (Às vezes coincide com o verdadeiro premiado em França, outras não.) Em Portugal foram oito as universidades que participaram este ano. O melhor relatório é premiado (com um pacote de livros franceses) e, desta feita, foi para uma estudante da Universidade de Aveiro que fez uma bela defesa de Houris (o romance vencedor em França), do argelino Kamel Daoud. Mas, no conjunto das oito universidades, a obra que recolheu mais votos foi Jacaranda, de Gaël Faye, que, segundo contou o encarregado de negócios da Embaixada, tem sido o romance preferido em quase todos os países que colaboram neste projecto do Goncourt fora de portas. Mas como é que eu nunca soube de uma iniciativa tão interessante nestes anos todos? Podiam fazer isto também com o Booker, porque não?
Já há bastantes anos que publico a obra de Isabel Rio Novo. O seu primeiro romance que dei à estampa, Rio do Esquecimento, é (salvo erro) de 2016; e depois dele saíram A Febre das Almas Sensíveis, Rua de Paris em Dia de Chuva e Madalena. Por uns tempos, a Isabel deixou-se da ficção e atirou-se a dois projectos de peso, as biografias de Agustina e Camões. Mas é já amanhã, Dia de Camões, às 18h30, que teremos a alegria de lançar na Feira do Livro de Lisboa, com apresentação do romancista João Pinto Coelho, o novíssimo romance da Isabel: A Matéria das Estrelas. Trata-se de uma história sobre a «morte lenta» de um jovem guarda-marinha, o mistério que a envolve e a investigação desencadeada por um médico amigo da qual advirão descobertas nem sempre fáceis de aceitar. A autora estará uma hora antes para autógrafos. Apareçam!
Na minha profissão, contra o que muita gente pensa, há imensas tarefas desagradáveis e burocráticas. Mas todas elas são claramente compensadas quando encontramos o texto de um novo autor que vale mesmo a pena. Se é um autor estrangeiro, já é bom; mas se se trata de um português, de preferência jovem, é ainda melhor. Foi por isso muito bom para mim, ao longo dos anos, pôr o nariz em alguns livros que nunca tinham sido lidos por nenhum leitor profissional antes de mim e que eu sabia que poderia ser eu a mostrar ao mundo em primeira mão. Mas também é uma alegria quando descobrimos um autor publicado por outra editora cujo livro de estreia lemos, pensando sempre como gostaríamos de ter sido nós os editores daquele livro (aconteceu-me, por exemplo, com o Bruno Vieira Amaral, que foi justamente quem «disse bem» do livro que trago hoje para aqui e que me levou a comprá-lo. Chama-se Lavores de Ana, escreveu-o Ana Cláudia Santos e é uma novela com uma estrutura nada ortodoxa sobre os trabalhos do amor em Nápoles, em dois períodos separados por alguns anos, vividos por uma mulher que é tradutora (o ofício coincide com o da autora) e os respectivos namorados, e também de algum modo sobre a vida posterior e anterior a esses relacionamentos italianos (factos e lembranças) em Portugal. A mão que escreve tem mão no que escreve e, apesar de a capa e o título não chamarem grandemente a atenção do leitor (lá estou eu a pensar que teria feito diferente), vale muito a pena conhecer esta nova escritora que, presumo, terá ainda muito para nos oferecer. Venha o próximo romance.
E, pronto, lá chegou mais uma Feira do Livro de Lisboa no Parque Eduardo VII. É a 95.ª, imaginem, e faço votos para que chegue aos 100 anos, se com as alterações climáticas o parque aguentar até lá e se a próxima direcção da Câmara Municipal da capital gostar de livros e de os ver junto dos jacarandás em flor. Este ano a feira começa mais tarde (é hoje a inauguração, às 12h00) e vai até domingo 22. Vai apanhar todos os feriados em que nós, o pessoal dos livros, poderíamos estar ao sol na praia (o 10, o 13 e o 19 de Junho), além de três fins-de-semana, e espero sinceramente que as pessoas queiram ler os livros dos muitos autores que irão para lá autografar e não é justo que fiquem à míngua. Vai haver também lançamentos (só eu vou fazer três: dos romances de Leonor Sampaio da Silva, Tiago Salazar e Isabel Rio Novo, e já falei de todos aqui), conferências, conversas, clubes de leitura, cinema, leituras de contos às crianças e muito mais. E montes de pavilhões de livros que nos farão, como sempre, gastar dinheiro e ir pesadinhos para casa. Mas antes em livros do que em remédios... Vamos à Feira?