As censuras
Quem viveu, leu e escreveu antes do 25 de Abril tem obviamente uma noção muito mais real do que foi a censura em tempos de ditadura e, até por isso, é mais reactivo às novas censuras que se têm recentemente estendido ao discurso e às práticas intelectuais sob a capa do politicamente correcto (mas indo muito além dele). Estamos, porém, a chegar a extremos insuportáveis, e é imperioso de uma vez por todas batermos o pé e dizermos que não se podem emendar, alterar, cortar ou apagar textos literários sem autorização dos seus autores ou herdeiros com a fraquíssima desculpa de que este ou aquele podem ofender com uma expressão mais dura ou uma palavra menos fofinha («gordo», por exemplo). Dois livros de um autor meu considerado «muito talentoso» foram recusados pela pessoa que assim o referiu por falarem «demasiado francamente» sobre certos assuntos (ai, a sensibilidade) e por ele não ser trans e ter escolhido incluir uma mulher trans na sua história (e, já agora, num livro galardoado com o Prémio Saramago). Mas já antes me acontecera uma tradutora norte-americana ficar altamente chocada por um texto que lhe dei para traduzir incluir uma passagem em que alguém entrava num pátio onde uma dúzia de miúdos «batiam na boca e gritavam como índios», porque falar assim dos índios era ofensivo para os leitores dos EU. Qualquer dia, as metáforas não se vão poder usar nem vamos poder ver os filmes de John Ford. Qualquer dia, não poderemos ler absolutamente nada e haverá mais gente a ler à procura de termos ofensivos do que a ler por prazer. Há que bater o pé e desfazer os equívocos. Há que olhar para o contexto e a época em que as coisas foram escritas. Um dia destes tiram-nos a Odisseia porque fala de mulheres que desviam homens casados ou têm pretendentes na ausência dos maridos... Ainda bem que aqui onde trabalho os livros dos Cinco e a Agatha Christie vão ficar como sempre foram. Ao menos isso.