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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

18
Jun24

Direitos e deveres

Maria do Rosário Pedreira

Quando eu era pequena, chamavam-lhes «deveres», embora a designação que se usava lá em casa fosse «trabalhos de casa», a que se seguiu a abreviatura «TPC», comum entre os jovens. Mas «deveres» servia para mostrar que, se gozávamos do direito a sermos educados e instruídos, deveríamos cumprir alguns deveres, como aprender e depois rever a matéria em casa por meio de trabalhos vários: cópias, ditados, contas, desenhos, composições... Na semana passada assisti quase por acaso (era o Manel que estava a ver uma série e a televisão ficou ligada, e ainda bem) a um filme que se chama justamente Trabalhos de Casa, do iraniano Abbas Kiarostami. Trata-se de um filme de 1989 e consiste basicamente numa entrevista mínima feita pelo cineasta a um grande número de rapazes de uma escola primária pública (são meninos de seis ou sete anos, que estão a aprender a ler), a quem ele pergunta quem os ajuda nos trabalhos de casa e o que lhes acontece quando não os fazem. E, embora tenham passado mais de trinta anos desde a realização do filme (relativizemos, enfim), é incrível como quase todos os entrevistados têm pais analfabetos (curiosamente, a ajuda nos trabalhos de casa costuma vir de uma irmã mais velha, mas não há uma única rapariga no filme). A maioria tem também medo dos professores e dos pais (há mesmo o caso de um temor incurável em que o aluno nem quis falar, aterrado com as consequências do que pudesse dizer, e pediu para ficar na presença de um colega); quase todos os miúdos, quando não fazem os trabalhos, sofrem castigos corporais de cinto (e algumas mães também batem, embora sejam sobretudo os pais). É quase cândido ver como a miudagem diz que gosta mais de fazer os trabalhos do que de ver desenhos animados, o que é obviamente falso (basta ver a carinha deles), mas é de certeza a resposta que as crianças acham que os salvará de uma boa surra. Fiquei mesmo marcada por este filme, a lembrar-me de que cá em Portugal também já se bateu com cinto, palmatória e régua, pais e professores, e que, enfim, a infância merecia amor e calma e quantas infâncias não foram duras, pobres e violentas? Fiquei também muito impressionada com a quantidade de TPC que crianças tão pequenas tinham de fazer, mesmo há quarenta anos, acho que isso por cá já mudou, não sei há quanto tempo, mas ainda bem (é preciso tempo para brincar). De todo o modo, o que quero mesmo é recomendar este filme que, por mais repetitivo que possa parecer, é uma lição sobre família, ensino, violência, medo, infância e falta de amor. É preciso ir atrás: foi na RTP2, na quinta ou sexta passada, mas vale imenso a pena.

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