Envenenados
Muitos dos autores de ficção que publiquei ao longo da vida eram também poetas. Alguns, aliás, já eram poetas antes de se terem tornado ficcionistas (José Luís Peixoto e valter hugo mãe, por exemplo). Diz a crítica que é difícil jogar nos dois lados com o mesmo nível – e talvez por isso uma das artes impere sobre a outra, fazendo com que determinado autor seja sempre conhecido ou como poeta ou como prosador (Saramago foi um romancista de excepção, mas a sua poesia não é muito difundida). Em todo o caso, não convém generalizar: acabo de ler O Uso dos Venenos, uma colectânea de poesia de José Carlos Barros, e não a acho nem superior nem inferior ao romance que dele publiquei no ano passado – Um Amigo para o Inverno – que foi finalista do Prémio LeYa em 2012. Vejo entre os dois livros pontos de contacto inequívocos, uma ligação às origens, à ruralidade, à memória. Até alguns objectos e palavras se cruzam nos dois volumes. Pedro Mexia, numa crítica ao poemário, fala de uma reunião de textos «com uma tonalidade humanista e melancólica que não teme o poético». Um exemplo, para que fiquem a conhecer melhor:
Ruína
Guardava a casa, o lume intemporal, como outros
guardam uma língua ou escondem da usura
alguns aspectos de uma biografia. Guardava a casa
como se não houvesse mundo além da escaleira
ou ao mundo não fosse dado entrar atravessando
a porta. É difícil compreender agora que a ruína
possa começar assim pelo lado de dentro, do interior
dos objectos que se chegou a supor imperecíveis.