Excerto da Quinzena
Observo-a. As suas mãos são transparentes, e tem uma tatuagem imprecisa no bíceps esquerdo. Uma cobra-real. A sua saia malva deixa entrever um delta de varizes na barriga das pernas, uma cartografia azul-clara. O seu corpo regista tudo. Posso ler todos os amores passageiros, os abortos, as traições, as viagens, as rendas por pagar. Um flamingo ferido, um anjo tantas vezes caído que já não consegue levantar-se. O verniz das suas unhas está lascado, deslavado, tão cansado como as suas olheiras. Quase adivinho uma tosse forte e profunda que lhe dilacera o tronco muito magro -- como se cada amante de passagem tivesse bebido o ar do seu peito até à última gota. Apesar de uma espessa camada de maquilhagem, vejo duas, três crateras no seu nariz. Treme enquanto fuma o seu longo cigarro mentolado.
Velibor Čolić, O Livro das Despedidas, tradução de António Gonçalves