Excerto da Quinzena
(Como sexta foi feriado, chega só hoje.)
Ao que parece, quando era nova, a mulher era «mesmo muito inteligente» – algo que a mãe, durante o seu último ano de tratamento do cancro, tinha aproveitado todas as oportunidades para lhe recordar. Como se, antes de morrer, esta fosse a única coisa que ela tinha de deixar absolutamente clara.
Em termos de linguagem, esse epíteto podia bem ser verdadeiro. Aos quatro anos, e sem que ninguém lhe ensinasse, já tinha um bom domínio do hangul, o alfabeto coreano. Desconhecendo por completo o que eram consoantes e vogais, tinha decorado combinações de sílabas como se fossem unidades. Quando fez seis anos, o irmão mais velho explicou-lhe a estrutura do alfabeto hangul, papagueando o que o seu professor tinha dito. Enquanto o ouvia, tudo lhe pareceu muito vago, mas acabou por passar toda a tarde daquele início da primavera de cócoras no pátio, preocupada com a ideia das consoantes e vogais. Foi nessa altura que descobriu a diferença subtil entre o som ㄴ quando pronunciado na palavra 나, na, e quando pronunciado na palavra 니, nih; depois disso, percebeu que ㅅ tinha um som diferente em 사, sah, e em 시, shi. Recapitulando todas as combinações possíveis de sílabas, descobriu que a única que não existia na sua língua era ㅣ, ih, combinado com ㅡ, eu, e por essa ordem, razão pela qual era impossível escrevê-la.
Essas descobertas triviais tinham sido para ela tão emocionantes e chocantes que quando, mais de trinta anos depois, o terapeuta lhe perguntou qual era a sua memória mais viva, o que lhe veio à mente foi nada mais nada menos do que a luz do sol que batia no quintal naquele dia. O calor crescente nas suas costas e na nuca. As letras que ela tinha escrevinhado na terra com um pau. A promessa maravilhosa dos fonemas, que se tinham combinado de uma forma tão ténue.
Depois de entrar para a escola primária, começou a anotar vocabulário na parte de trás do seu diário. Sem propósito nem contexto, apenas uma lista de palavras que a impressionaram; entre elas, a que considerava mais valiosa era 숲. Na página, este monossílabo parecia um antigo pagode: ㅍ, as fundações, ㅜ, a estrutura principal, ㅅ, a parte de cima. Gostava da sensação de o pronunciar: ㅅ–ㅜ–ㅍ, s–oo–p, a sensação de, primeiro, franzir os lábios e, depois, soltar o ar lentamente. E, por fim, os lábios a fecharem-se. Uma palavra terminada em silêncio. Fascinada por esta palavra em que pronúncia, significado e forma se entrelaçavam por entre a quietude, escreveu: 숲. 숲. Florestas.
E, no entanto, apesar de a mãe a recordar como sendo «mesmo muito inteligente», ela foi uma criança que passou pela primária e pelo resto do ensino básico sem atrair a atenção de ninguém. Não arranjava problemas nem tinha notas impressionantes. Sim, tinha algumas amigas, mas fora da escola não se dava com ninguém. O único tempo que passava à frente do espelho era quando estava a lavar a cara; não era excitável como as outras miúdas da escola e, praticamente, nunca foi incomodada por vagos desejos românticos. Quando as aulas acabavam, ia para a biblioteca local e lia um livro que não estivesse relacionado com a matéria das aulas, levava depois alguns livros para casa, aninhava-se debaixo do cobertor e adormecia a ler. A única pessoa que sabia que a sua vida estava violentamente dividida em duas era ela própria. As palavras que anotava na parte de trás do diário contorciam-se por vontade própria, formando frases estranhas. De vez em quando, essas palavras metiam-se no seu sono como espetos, fazendo-a acordar assustada várias vezes por noite. Dormia cada vez menos, era cada vez mais dominada por estímulos sensoriais e, por vezes, uma dor inexplicável queimava-lhe o plexo solar como se fosse um ferro de marcar.
A coisa mais dolorosa era a forma horrivelmente distinta como as palavras soavam quando abria a boca e as empurrava para fora, uma a uma. Mesmo a frase mais despropositada continha completude e incompletude, verdade e mentira, beleza e fealdade, com a fria claridade do gelo. Brancas, saindo como fio de aranha da sua língua e pela sua mão, essas frases eram vergonhosas. Queria vomitar. Queria gritar.
Han Kang, Lições de Grego, trad. Maria do Carmo Figueira