Excerto da Quinzena
De onde eu venho não há flores selvagens nem pessoas selvagens. De onde eu venho não se podia crescer demasiado nem ser demasiado.
Lá até o sol é cinzento e os jardins são apenas espaços verdes. Não têm vida nem vontade própria, são aquilo que devem ser. Cumprem um propósito.
O Muro de Berlim nasceu e dois anos depois nasci eu. Fui muito desejada até ao dia em que me materializei. Depois, para a minha mãe, passei eu mesma a ser um espaço verde.
A minha primeira memória de infância é com a Mavie. Não sei se ela usava sempre o mesmo vestido amarelo às riscas brancas, ou branco às riscas amarelas, mas nas minhas memórias é sempre assim que a vejo. Estávamos as duas descalças no jardim e a brincadeira era a minha favorita: molhar a terra com o regador e saltar em cima das poças até o seu vestido amarelo e branco ficar coberto de pintas castanhas e a lama nos salpicar o cabelo e as pestanas. Aí, já cansadas de tanto rir, deitávamo-nos na relva e ficávamos a observar a dança das folhas nas árvores altas.
A Mavie era uma magnólia estrelada. Era alta, bonita e estava sempre perfumada. Tinha o cabelo de um amarelo quase branco e era muito fininha, quase transparente. Parecia tão leve que às vezes, quando o vento soprava com mais força, eu prendia as suas mãos nas minhas para que ela não levantasse voo. […]
A Mavie sabia o nome de todas as flores e dizia que cada uma delas tinha um poder mágico. «A violeta trata a melancolia, a língua-de-ovelha ajuda a sarar as feridas, a erva-de-são-joão contribui para o tratamento da depressão.» Eu achava tudo tão fascinante que às vezes ia ao jardim sozinha, quando a Mavie estava entretida com outros afazeres, só para recapitular a matéria e ter a certeza de que não confundia as plantas e as suas respetivas magias. «A violeta trata a melancolia, a língua-de-ovelha ajuda a sarar as feridas, a erva-de-são-joão contribui para o tratamento da depressão.»
Aos seis anos fui para a escola e nunca mais vi a Mavie. Por vezes os meus sonhos enchiam-se de flores e ela também lá estava, com o seu vestido amarelo e branco à espera de ser salpicado.
Luísa Sobral, Nem Todas as Árvores Morrem de Pé