Excerto da Quinzena
Ao anoitecer a cidade mergulhava numa névoa espessa que, mais do que descer do céu, parecia surgir do rio, supurada pelas suas águas pestilentas. Uma névoa que se arrastava pelas ruelas e adquiria uma tonalidade amarelenta como se se impregnasse, ao passar, da sujidade das docas e dos subúrbios portuários, por mais que os últimos raios de sol conseguissem arrancar-lhe às vezes enganadoras centelhas de cobre. De madrugada, a sua densidade tornava-se sufocante e apenas com a chegada da manhã começava a transformar-se, sem pressas, numa ténue neblina que só desaparecia já bem entrado o dia. Londres tornava-se então corpórea, real, tão real que podia chegar a ser insuportável. Talvez por isso os habitantes dos bairros mais pobres apreciassem, no fundo, a neblina que envolvia as noites. Ela era a mãe severa que os aconchegava e que ocultava a miséria das suas vidas, uma ardósia onde podiam desenhar sonhos até o sol voltar a levantar o véu a cada dia e a urbe, populosa, febril, fervente como um caldeirão que as águas do Tamisa não conseguiam arrefecer, mostrar o corpo feroz. Uma cidade de onde emanava um halo de corrupção que flutuava com particular densidade sobre os edifícios enegrecidos pela fuligem do bairro de Soho, como uma segunda neblina invisível ao olhar mas perceptível na alarme da pele, que se eriçava perante o espectáculo das ruas.
Ódio, de José Manuel Fajardo, Tradução de Miranda das Neves, Teodolito