Excerto da Quinzena
Se antes eu era um pessimista, depois de comprar a bengala passei a ser um cínico. Um homem novo com uma bengala podia dar-se ao luxo de desprezar o mundo e, assim sendo, eu tencionava aproveitar a oportunidade para ajustar contas com a realidade. Havia alguma coisa naquele objecto – e na dor constante que sentia na perna, e na firme crença de que, dentro de mim, algo apodrecia – que transformava todo o cepticismo da minha juventude no mais puro fel. Não conseguia andar sem coxear e, no entanto, todos me observavam com o mesmo olhar incrédulo do médico, como se eu fosse maluco e imitasse um inválido por puro prazer. O médico tivera razão numa coisa: um homem de trinta e tal anos com uma bengala não lembra ao diabo; era preciso mais atrevimento para que o diabo se lembrasse de nós.
João Tordo, O Bom Inverno, Publicações Dom Quixote, 2010