Excerto da Quinzena
No começo da primavera, Agustina saiu de casa a arrastar as pantufas e, cheia de tremeliques, bateu à porta da amiga para lhe contar que o senhorio vendera o imóvel e os novos proprietários queriam despejá-la à pressa. Não faltavam imobiliárias, sociedades e Fundos a comprarem casas e lojas a granel por aquelas bandas. Mas uns levavam as investidas ao limite. Primeiro, deixaram-lhe um recado na caixa do correio. Depois, voltaram com promessas e papéis, garantindo‑lhe um apartamento jeitoso não muito longe, mais aconchegante, que era uma forma de dizer assim para o pequeno, nem os móveis lá cabiam; mas, quando ela recusou, trocaram logo as simpatias por ameaças e incumbiram dois brutamontes de lhe passar a mensagem. Quando lhe cortaram a eletricidade para a amedrontar, andou à luz de velas e lamparinas a óleo, sempre com medo de pegar fogo à casa, sobressaltando-se só de ouvir o batente ou a serenata dos gatos esfomeados à porta.
Assim nascia o terror.
[...]
Nem Piedade se livrou da praga.
Começou também com uns bilhetinhos metidos na caixa de correio, brotavam como cogumelos venenosos. Depois do primeiro, ela apanhava-os e deitava-os ao lixo sem os ler. Talvez os intrusos julgassem que a vergavam facilmente; naquela idade, as pessoas não precisavam de muito para morrer, e para eles tanto dava, mais velho, menos velho. Uma vez bateram-lhe à porta com uma conversa fiada de vendedores de Bíblias, como quem anuncia a chegada do Salvador, mas Piedade estava de sobreaviso e percebeu logo ao que iam. Fez-se de desentendida e despachou-os em três tempos, porque, ao contrário da maior parte dos vizinhos, arrendatários tratados abaixo de cão, a casa pertencia-lhe. Julgou que o assunto ficara arrumado, mas eles voltaram. No começo, sozinhos, de mãos vazias, como se lá tivessem passado por acaso,
– Bom dia, minha senhora, como vai?
cheios de salamaleques, só os olhos a espreitarem pelo postigo entristecido, sorrisos desafinados. Pouco depois, sobrevoavam a casa como abutres; as caras mudavam, mas o paleio era o mesmo. Vinham aos pares ou em grupo, fatos e gravatas com voz grossa, carregando papéis numa pastinha polida, uma caneta a jeito para o caso de a persuadirem com dois dedos de conversa, apontando-lhe as linhas com uma cruz como se ela fosse parva.
– É só assinar.
Já sem se esforçarem tanto por agradar, retocando os argumentos para parecerem diferentes:
– Diga lá, minha senhora, para que quer este casarão na sua idade?
Susana Piedade, Três Mulheres num Beiral