Excerto da Quinzena
«Diz ela que o mundo nem sempre foi assim. Noutros tempos, a avó corria à beira do rio com um pau de vime na mão a espantar os espíritos dos mortos e batia nas pedras e na água como se sacudisse os males da Terra. Tecia nos lábios uma ladainha, uma canção que se misturava na corrente e na espuma dos rápidos.
Diz ela que o mundo era diferente: as árvores frutavam-se de forma espontânea, como se tivessem vida própria, e ninguém as regava e podava. Os muros enchiam-se de musgos, campainhas e pipilros, brotavam cogumelos de todas as espécies em todos os cantos e era possível ler nas rugas e nas entranhas dos troncos o destino dos viventes.
Cada um sabia quem eram os outros e cada qual conhecia todos e mais do que a eles, os pais e avós, às vezes os bisas e tudo assim, mesmo na linha colateral, ou seja, primos e tios e por diante. Ainda és prima do Caneco diziam-lhe; e era, numa distância que se perdera em várias gerações de nascimentos e mortes sucessivas, mas ao vê-la passar sentiam essa ternura que habitava algures num canto da sua genealogia.»
António Tavares, O Coro dos Defuntos