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Horas Extraordinárias

As horas que passamos a ler.

15
Dez23

Excerto da Quinzena

Maria do Rosário Pedreira

Saí ontem de casa com uma ideia bastante vaga de como iria decorrer a tarde, disposta a deixar-me conduzir pelos meus passos. Não é bem verdade porque pelo menos tinha dois objectivos: 1) ir até à rua onde está o café que tem quadros do Miguel Ribeiro expostos; 2) ir à Cooperativa Árvore onde estava o corpo sem vida de João Semedo. Há dias vi o Miguel na Poetria a comprar livros de poesia, febrilmente como sempre. Achei-o mais gordo mas com a mesma cor macilenta, os olhos sem luz e a mesma voz de criança tímida. Disse com uma calma desconcertante que tinha um linfoma. Aliás, vinha de mais um tratamento no Hospital que era o que lhe provocava aquele inchaço no rosto. E então prometi-lhe que ia ver os seus quadros, sem ficar com o nome da rua, em frente ao Cemitério do Prado do Repouso [...]. Mas acabei por descobrir tudo: a rua (Ferreira Cardoso), o café (afinal churrasqueira Nova Era), os quadros, a casa (magnífica) onde o Miguel já não mora e, oh surpresa, o próprio Miguel sentado a uma mesa da Nova Era, sozinho, a comer queijo acompanhado de um copo de vinho. Bom vinho, como constatei depois de aceitar o convite para me sentar e brindar com ele «à poesia» como sugeriu. Quando lhe disse que queria ir conhecer o cemitério dispôs-se a acompanhar-me para me mostrar a campa de Eugénio de Andrade, da autoria de Siza Vieira, em mármore liso de aspecto depurado e austero com gardénias plantadas num dos lados e um poema gravado, do próprio Eugénio, que termina com os versos: «A morte não existe / tudo é canto ou chama» [...]

Despedi-me do Miguel e segui para a Árvore, onde me deparei logo com uma bateria de jornalistas no exterior com os equipamentos prontos para a notícia. Lá dentro, muita gente, das artes, do teatro, da política, claro, muitos jovens, um vídeo a passar imagens de muitos dos momentos da vida do João Semedo [...] No modesto «livro de condolências» não resisti a transcrever os dois versos do poema gravado na campa do Eugénio [...]: «A morte não existe / tudo é canto ou chama» [...].

 

Dina Ferreira, A Mais Bela Profissão do Mundo: História de Uma Livraria, seguido de Os Dias de Uma Ex-Livreira à solta, Poetria, 2022

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