Feios, porcos e maus
Tarantino e Comarc McCarthy têm afinidades óbvias e uma estética até semelhante. Digo isto a propósito da leitura de Filho de Deus, um pequeno romance do americano que a cada página desenha personagens para Tarantino recriar nos seus filmes: homens violentos, feios, insensíveis, brutos de uma forma gratuita. O protagonista, Lester Ballard, até podia ser um pobre diabo (igual a nós, diz o narrador), a quem tiraram a terra por «mau comportamento». Mas, embora o seja, é igualmente um tarado que dispara sobre os vivos (mormente raparigas) como quem aponta a arma a um passarinho só pelo gozo de lhe acertar. A pontaria é francamente boa – e daí resultam, claro, muitas mortes que fariam as delícias de Tarantino numa das suas fitas. Mas os assassínios não são o seu pior «pecado», porque Lester Ballard colecciona os cadáveres, a quem compra excitantes roupas novas e com quem pratica sexo. Um louco? Evidentemente, mas conseguimos, ainda assim, ter pena deste criminoso que não tem ninguém, que foi privado de bens e família, de amor, de lar, de tudo, até atingir uma degradação tão grande que o aproxima do homem das cavernas (cavernas onde, de resto, vive durante os últimos anos da sua vida, até ser finalmente preso e internado num hospital psiquiátrico – o único sítio onde terá um tratamento minimamente humano). McCarthy é um ás da escrita – podia ganhar o Nobel da Literatura em Outubro, que eu não me importava nada – mas este romance de 1973 incomoda, é para leitores que tenham um estômago de ferro.
P.S. Cortei a primeira frase deste post, que dizia que um filme dos irmãos Coen baseado numa obra de Cormac MacCarthy era de Tarantino (não sei como fui fazer tamanha confusão) e agradeço ao primeiro comentador a chamada de atenção. A quem ainda a leu, peço desculpa pela incorrecção.