O estranho em nós
«Um preto de cabeleira loira e um branco de carapinha não é natural.» Assim começava um velho anúncio de televisão a um produto que restaurava a cor original do cabelo (uma espécie de tinta, suponho). Vem esta memória a propósito do que vemos como natural e de estranharmos nos outros – estrangeiros – coisas que afinal são mais do que naturais, mas que não correspondem ao arquétipo que temos deles, porque as imagens que construímos através dos media são redutoras, referindo-se normalmente àquela minoria que dá direito a notícia. Em Americanah, a nigeriana Chimamanda Ngosi Adichie conta que, nos EUA, umas cabeleireiras que lhe desfrisaram uma vez o cabelo a elogiaram por falar tão bem inglês, estando na América há tão pouco tempo. A verdade é que a língua oficial da Nigéria é o inglês (e que os americanos não são propriamente cultos); mas, quando pensamos hoje na Nigéria, vemos logo os Boko Haram raptando 200 raparigas de uma só vez e ouvimo-los, sem querer, gaguejar numa qualquer língua selvagem e incompreensível. Quando fui a Éfeso (e, se destruírem Palmira, sempre nos consolará a beleza de Éfeso), a guia turística turca era loira, usava mini-saia e bebia cerveja – e logo foi avisando os mais admirados (de novo, eram os americanos) que não constituía um caso especial. Também num destes fins-de-semana, na Ericeira, ouvi comentar o espanto que fora para muita gente a chegada de um grupo de surfistas afegãos – muitos correram a vê-los como se se tratasse de uma atracção de feira; e talvez estivessem à espera de encontrar sobre as pranchas homens de fatiotas até aos pés e turbantes, de metralhadora a tiracolo, feitos os talibãs que encheram os ecrãs das televisões ao longo de muito tempo. A imprensa e a televisão, embora nos dêem informação, também nos criam imagens truncadas de certos países e é preciso estarmos alertados para não generalizarmos a partir delas. O que vale é que, lendo livros, mesmo ficções como Americanah, podemos corrigir a nossa ideia do que é ou não natural.