Obituários
Lembro-me dos tempos em que os jornais eram apenas de papel e de haver jornalistas especializados em obituários que eram verdadeiras obras de arte. Assim que alguma celebridade começava a acusar vestígios de doença grave ou provecta idade, lá se pedia ao jornalista em causa que investigasse a vida do «moribundo» e tivesse a peça preparada para quando a tragédia acontecesse. Por um lado, era muito mais difícil do que hoje: sem Internet, era preciso meter o nariz nas bibliotecas e nos arquivos, falar com meio mundo sem dar a entender para que serviam as perguntas, cuidar da prosa para fazer uma homenagem à altura, ter o texto pronto para ir à caixa de chumbo quando a hora chegasse ou ir actualizando enquanto o futuro morto permanecia na Terra; por outro lado, era mais fácil: não havia demasiada informação ao dispor para confundir o autor nem se tinha trabalho a separar o trigo do joio (hoje é bem capaz de haver mais notícias falsas sobre alguém do que verdadeiras, e é já quase impossível confiar a 100% no que está na Internet). Recentemente, o diário Observador publicou o obituário de Gonçalo Ribeiro Telles (que também já devia estar pronto há tempos) e depois teve de pedir desculpa publicamente por ter matado o senhor arquitecto no dia do seu 98.º aniversário... Mas não foi o único jornal que cometeu esse erro, e já houve uns quantos escritores assassinados antes da hora nas páginas da necrologia dos jornais: Hemingway, por exemplo, mas também Bertrand Russell, García Márquez e Mark Twain, este último duas vezes! Tenho ideia de há muitos anos ter lido um romance ou um conto em que alguém está a ler o jornal e descobre nele o seu próprio obituário, ficando sem saber se foi engano, se está realmente morto. Infelizmente, não me consigo lembrar do autor, a senilidade ataca-me fortemente; pensei que era Borges, o que faria todo o sentido, mas a Internet não o confirma e eu não posso ir folhear a obra toda... (Se alguém tiver lido, ajude-me.) Também conheço escritores e outras celebridades que preparam os seus próprios obituários porque não querem que, depois de mortos, digam mal deles. Não sei se vale a pena a preocupação: os mortos recebem mais elogios do que os vivos e até há umas pestes que se tornam santinhos after death.
Hoje vou recomendar uma autobiograbia imaginária de um imperador que entra na morte de olhos abertos: Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar.