Os mortos e a literatura
Li algures uma frase de Voltaire que apontei logo no meu telemóvel: que devemos respeito aos vivos, mas, aos mortos, devemos apenas a verdade. Vem isto a propósito de um artigo que li no The Guardian há uns dias sobre o grande Thomas Bernhard, o mais talentoso dramaturgo (e romancista) austríaco, e além disso um homem poderosamente charmoso, como se vê pelas várias fotografias que se encontram por aí, incluindo uma do final dos anos 1950 que acompanha o artigo em questão. Parece, porém, que a sua imagem pública de disciplina, génio e generosidade é agora desmantelada por uma biografia escrita pelo seu meio-irmão Peter Fabjan (que, em português, se chamaria algo como Uma Vida ao lado de Thomas Bernhard: Um Relatório) e publicada em alemão há um par de meses, estando a fazer furor sobretudo na Áustria, onde se encontra no Top 10. Pois o meio-mano diz que o grande escritor era afinal um fantasma, até um demónio, e que viver ao seu lado foi penoso, porque se tratava de uma pessoa vulnerável, surda aos demais e que, quando os próximos já nada lhe podiam oferecer, os descartava sem dó nem piedade. Segundo a frase de Voltaire, talvez Fabjan esteja certo em contar tudo isto, mas importa realmente tantos anos depois da morte de Bernhard deixar um testemunho tão negativo de alguém que já não se pode defender? Há quem pense que, depois de mortos, não se deve denegrir a imagem dos escritores (que cai mal, enfim) mas, por outro lado, há também quem espere que o escritor se torne esqueleto ou cinza e afie logo as unhas para lhas enterrar na memória. Será Fabjan um oportunista ou alguém muito magoado a vingar-se de uma ferida que não sara? Em que podem, no fundo, os mortos servir a bela literatura?