Ouvir ou ler?
A produção de audiolivros está a crescer (hoje já há muito por onde escolher) embora eu continue a achar que não é a mesma coisa ler livros e ouvir livros. Em todo o caso, confesso que, desde a leitura da crónica de Rogério Casanova no Público do último domingo, já não faço uma cara tão feia aos audiolivros e acabo por aceitá-los em circunstâncias excepcionais em pessoas que vêem bem. O cronista começa por contar-nos (descobrimos quem era Elena Ferrante, mas alguma vez saberemos a identidade de Rogério Casanova?) que, dada uma terrível contractura que sofreu, não conseguia posição para ler; e, enquanto ia tomando cápsulas de relaxante muscular umas atrás das outras para se livrar daquela dor aguda, tomou a opção de ouvir em inglês Os Irmãos Karamazov. Descontando a ironia magistral (leiam a crónica, que vale muitíssimo a pena), Casanova defende que "ouvir [um livro] é delegar parte da cognição a um autor desempregado" ( e eu concordo) e "ler é uma actividade tresloucada: consiste em ficarmos especados a decifrar uma sucessão de escaravelhos simbólicos até essas configurações gerarem pessoas, lugares, emoções e ideias dentro do nosso crânio", chegando mais à frente à conclusão de que "a diferença entre papel e ficheiros .mp3 é meramente estética: ler é uma alucinação com legendas, ouvir é uma alucinação com dobragem". Como disse logo ao início, não tenho a certeza absoluta de que assim seja, mas o cronista é um grande escritor e só as suas ideias e expressões já valem a pena. Claro que, depois de tantos comprimidos, ele esqueceu uma grande parte do que ouvira, mas isso, estou em crer, não era culpa do meio que escolhera.

