Vida e trauma
Hoje fala-se e escreve-se muito sobre identidade sexual e transexualidade. Mas, na maioria das vezes, o assunto é tratado de forma quase militante, combatendo o preconceito, o discurso do ódio e a violência de género (nada contra, se isso ajudar a corrigir as injustiças, o problema é que por vezes assume uma «gritaria» que tem o efeito contrário). Não é o caso deste livro absolutamente maravilhoso chamado Maus Hábitos, de Alana Portero, que comprei há meses porque a autora estava convidada para vir às Correntes d'Escritas e eu tinha intenção de o ler antes disso. Mas ela acabou por cancelar a viagem e só recentemente peguei no romance. É a história de alguém que, logo aos cinco anos, tem uma noção exacta de que nasceu no corpo errado (um menino que se fecha na casa de banho para se maquilhar às escondidas e que adora sentar-se a ouvir conversas de mulheres sobre roupa e cusquices); e, longe de ser uma obra de agenda política sobre defesa de direitos, linguagem inclusiva, operaçõs de mudança de sexo ou tratamentos hormonais, é toda ela sentimento, carne e sangue, sem filtros, com as palavras todas que magoaram a protagonista enquanto crescia («maricas», por exemplo, aparece em quase todas as páginas) e que a própria usa sem medo nem paninhos quentes. Um livro magnificamente escrito sobre o trauma de não conseguirmos ser quem os outros gostariam que fôssemos e, por outro lado, a dureza de termos de nos esconder, talvez nos piores tugúrios, para podermos ser quem realmente somos nem que seja uma vez por outra. Eu já tinha lido o magnífico As Malditas, de Camila de Souza Viladas, e visto a série Veneno, baseada numa história verídica de uma travesti (é mesmo assim que é descrita no livro, que alega que trans é um eufemismo naquele caso), mas Alana Portero escreveu um livro que não deixa ninguém indiferente cuja acção decorre num bairro problemático dos arredores de Madrid (gente antiquada e bruta, toxicodependentes, rapazes violentos, velhos sozinhos, grupos neonazis...); é mesmo literatura a sério e mostra de forma incrivelmente humana e verosímil o que pode ser realmente o sofrimento de alguém que vive desde sempre uma vida que não lhe pertence. Belíssimo e contudente.